Quarenta e duas pessoas caminham, lentamente, pelas vielas do Cemitério Municipal de Maringá. A maioria, ali, tem 70 e poucos anos – pelos companheiros de féretro, não é possível arriscar a idade do falecido? Próximos ao caixão, sete familiares têm os olhos encharcados de lágrimas. O restante do grupo, durante o cortejo, segue sem choro, a passos serenos e conversando amenidades. “Será que chove?”, pergunta um velho, apontando o céu carregado e ameaçador. “O Waldemar trabalhou muito como cerealista, não foi?”, indaga uma velha, também assustada com o inevitável temporal. “Cerealista?! Não, isso foi há muito tempo. Ele investiu em fazenda, isso sim”, responde outro velho, apavorado com o primeiro pingo da chuva despencando no braço direito. entre conversas aleatórias e choros compulsivos, quase ninguém nota, marchando à frente do cortejo, em silêncio respeitoso, um inusitado personagem de apenas setenta centímetros: Bebê, um vira-lata de três anos, que há cerca de seis meses acompanhou o enterro de seu dono e foi esquecido – ou abandonado – pelos familiares no local. Adotado pelos funcionários do cemitério, Bebê é, desde então, uma gura onipresente nos enterros maringaenses. Uma espécie de 4º funcionário ocial das cerimônias, junto à dupla de coveiros – sempre calados – e ao motorista de terno e gravata que guia o carrinho de golfe, transportando, além do caixão, o punhado de coroas de ores. “Ele é a nossa alegria”, revela o coveiro Damião de Souza, o melhor amigo do Bebê. “Nos enterros, todo mundo gosta dele. Quando tem aplausos na hora do sepultamento, ele até late!”, conta. Impossível calcular, até o momento, quantos enterros já foram testemunhados pelo Bebê. O Cemitério Municipal de Maringá recebe de 2 a 14 mortos por dia, num caótico entra e sai de caravanas de parentes emocionados e, por isso mesmo, nenhum coveiro sabe exatamente onde foi sepultado o antigo dono do Bebê. Rotina do cão Bebê passa em frente ao elegante bigode de Gabriel Castro (29/7/1967), dá um latido para o olhar de galã de Antonio Pereira Guedes (8/10/1942) e abana o rabinho para o sorrisão de Shirley Moreschi Planas (25/12/2009), que mira o fotógrafo com seu belo chapéu panamá. Flâneur dos mortos maringaenses, Bebê não gosta de ter sua rotina interrompida por carinhos de estranhos. Avesso a colos e afagos demasiadamente pegajosos, ele gosta mesmo é da liberdade de correr atrás dos felinos, caçar baratas e borboletas – guloso por todas elas -, e deitar no gramado de barriga para cima, observando, sereno, os rasantes de pássaros entre uma árvore e outra. “Ele anda por todo o cemitério. Conhece isso mais que um monte de funcionário, viu?”, dedura um dos coveiros. “A gente ca triste se não vê ele”, confessa Fátima Rodrigues, responsável pelo controle de sepultamentos. Há quatro anos trabalhando no cemitério, ela conta que Bebê é o terceiro cachorro abandonado por ali. “Teve uma cachorrinha pretinha e um cachorrinho pretinho, dois vira-latas, há um tempo atrás: o cachorrinho foi embora e a cachorrinha foi adotada por um coveiro”, lembra. Quando a fome bate, Bebê deixa a caça a borboletas e segue para a sua casinha de lajota, no estacionamento das motocicletas dos funcionários do cemitério, onde uma saborosa e nutritiva refeição está sempre à sua espera. O coveiro Damião de Souza é responsável pelo investimento de R$ 24 por mês para sustentar o banquete canino. Suicídio no cemitério Em seis meses de convivência harmoniosa, Bebê trouxe alegria aos funcionários que convivem diariamente com cenas tristes e dolorosas e, de uma forma muito peculiar, fez com que os coveiros se unissem, em urgência, contra a morte. Certa vez, acompanhando um dos féretros, Bebê se distraiu no trajeto e passou a perseguir, alucinadamente, uma borboleta. Obcecado pelo inseto, atravessou o caminho de uma máquina de escavar terra, e foi atropelado. “Pensei que fosse o m”, recorda o coveiro Elenildo Marques, que prestou os primeiros socorros e, imediatamente, partiu em direção ao veterinário. “Ele quebrou a bacia, o fêmur e teve a bexiga pressionada.” As despesas caram em R$ 620. Um vereador maringaense doou R$ 250, entre dinheiro e remédios, e o resto foi rachado entre os coveiros. “Hoje, ele tá ótimo. Olha aí, ó. Bebêê, ô Bebêê…”, diz o coveiro, num tom amigável, aproximando-se do cachorro que, por sua vez, responde com latidos ameaçadores e ranger de dentes. “Fui eu que salvei ele, mas olha como ele me trata”, lamenta o coveiro. “Acho que ele cou com trauma, né? Deve olhar pra mim e lembrar-se da dor… Ei, mas pera aí: se você colocar o Bebê no jornal, com foto e tudo, ninguém vai querer levar ele embora daqui, não, né?”, preocupa-se. Discreto e respeitoso No enterro de Waldemar Possato, pioneiro maringaense que, segundo amigos e familiares, não tinha cachorro em casa – embora não tivesse nada contra esse tipo de animal -, as 42 pessoas não se importaram com a presença de Bebê. Discreto, ele farejou tranquilamente sapatos, botinas e tênis esportivos de, pelo menos, vinte sujeitos. Viu seis homens levarem o caixão rumo a um buraco na terra. Notou o quarentão de terno e gravata descer do carrinho de golfe e depositar a primeira coroa de ores. Ouviu, quieto e calado, o choro de sete familiares. Cheirou mais oito pés, sempre por trás, sem ser inconveniente. Na quinta coroa de or, Bebê se aproximou mais que todos os amigos e parentes, espiando, no fundo da sepultura, a cara da morte. Ali, o cão coveiro não sorriu, não latiu, não abanou o rabinho. Elegantemente, afastou-se e seguiu rumo às árvores do cemitério, prevendo a chuva que, um minuto depois, despencaria fatal, sobre todos nós. Fonte O Diario
Fotos João Paulo Santos